Notas sobre a representação do Grupo Folias D’Arte: Êxodos.
Foi necessário um naufrágio para negar e resistir a um estado de coisas administradas pela lógica totalizante que transforma homem
Divagações críticas da peça “Êxodos: o eclipse da Terra”
Em “Êxodos: o eclipse da Terra” surpreende a encenação constituída, destacadamente, pela força lírica de personagens alegóricos que sintetizam em suas trajetórias, entre a esperança e o cansaço, a ambivalente condição humana em busca de sua liberdade, muitas vezes formando quadros vivos que condensam esses sentidos como se fossem pinturas ou fotografias. A ambientação degradante, que remete à crueza das ferragens e ferrugens de um navio, juntamente com a utilização das cores, seja dos objetos, da iluminação, dos figurinos e dos materiais, especialmente as tintas utilizadas pelo personagem Esaú, compõem a potente atmosfera onírico-poética do espetáculo. Inspirada, especialmente, nas obras do fotógrafo Sebastião Salgado e do escritor Gabriel Garcia Marques, a obra realizada pelo grupo Folias D'arte traz à cena personagens que desejam desesperadamente partir, a bordo de um navio, em busca de um sonho, o que torna quase inevitável a pergunta: o que move as pessoas a se deslocar, a migrar? Será unicamente por que se vislumbram melhores condições de vida em outro lugar? Poderia ser a busca de uma paz gerada pela necessidade de pertencer a algo, ou de possuir uma identidade? Ou até mesmo uma estratégia, consciente ou inconsciente, de sobrevivência existencial que exige romper modelos culturais pré-estabelecidos? Por exemplo, toda vez em que se criam expectativas quanto a um determinado comportamento é necessário sair, fugir desse “lugar” de confinamento existencial? Talvez, entre tantas possibilidades, a necessidade da migração seja alimentada pela fantasia de que a mudança para um novo lugar consiga resolver questões existentes, como se ao transferi-las de lugar se pudesse solucioná-las, evitando assim, encará-las de frente?
Sem dúvida, esse exercício pessoal de divagações tributárias a “Êxodos: o eclipse da Terra” ressoa com seu tom onírico. Essas indagações abstratas mais amplas provocadas pelo espetáculo constituem um tipo de exercício intelectual prazeroso, que, no entanto, excita em demasia no espectador a sua esfera mental, mais distanciada, em detrimento de uma mobilização emocional, mais próxima, mais sensorial. A obra propõe um engajamento com o público: num primeiro momento uma viagem coletiva é incentivada pelo personagem anjo-narrador para que os espectadores embarquem numa viagem e tomem decisões juntos com ele. Cria-se então uma expectativa de participação de uma experiência que, mesmo quando a platéia é indagada sobre seus sonhos, ou presenciando de perto os depoimentos dos personagens, não se efetiva, deixando-a apartada do jogo experiencial proposto. Em Êxodos: o eclipse da Terra, a força das imagens poéticas e a intensidade de algumas atuações são insuficientes para atrair e colocar o espectador, seja por qual caminho for, pela via do familiar; do ilusionismo gerado pela identificação com os personagens, ou do seu contrário, pelo estranhamento, em contato com um sentimento mais profundo, talvez mais político, que faria juz à tradição do grupo, de sensibilizá-lo para uma situação social generalizada de não pertencimento, uma sensação de “se estar sem chão”. Destaca-se a exibição de vidas deslocadas que apontam para um mundo sem saída, e nos perguntamos se essa desesperança não vai de encontro a certo tipo de sentimento social antagônico, de um reavivado otimismo conjuntural em um novo ciclo sócio-econômino, impregnado, de certo modo, no imaginário social quanto ao futuro do país. Será que este choque de expectativas é suficiente para compreender a dificuldade do espetáculo em seduzir a percepção de um “espectador-de-uma-representação” para de um “espectador-vivenciador”? Questões que ficam...
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